sexta-feira, 20 de abril de 2018

REINADO EM ITAÚNA

O “reinado” ou “congada” em Itaúna
João Dornas Filho
1941

Apesar das medidas proibitivas tomadas ultimamente pelas autoridades eclesiásticas, ainda se realizam em Minas, em épocas, que variam de lugar a lugar, as festas africanas do “Reinado” ou “Congada”.

Como acontece com a maioria das festas negras, o “Reinado” se deixou influenciar pelo catolicismo, e as cerimônias se revestem desse caráter misto que não deixa de emprestar-lhes uma feição de delicioso pitoresco.

Os festejos do “Reinado” em Itaúna, Oeste de Minas, se realizam a 15, 16 e 17 de agosto, em honra da Senhora do Rosário. Não sei por que motivo escolhem os pretos o dia da Assunção da Virgem, para início dos festejos, quando homenageiam a sua, padroeira Senhora do Rosário, que tem o seu dia no calendário de outubro.

A festa se inicia propriamente na noite de 14 quando se celebra uma ladainha na d0 Rosário na Capela da Santa, situada num outeiro e que foi a primitiva matriz do antigo arraial de Santana de São João Acima.

Essa ladainha era até pouco tempo rezada pelo vigário, com o concurso do povo e dos negros vestidos a caráter. Hoje, com a proibição episcopal, os pretos, que foram expulsos das festas católicas do Rosário, construíram uma casa ao lado da capela, onde realizam as suas cerimônias, obedecendo em tudo à tradição.

Cada ano escolhem os reis da festa, geralmente pessoas de recurso, que oferecem nesses dias verdadeiros banquetes aos negros e mais pessoas que o vão visitar. 

Mas existe também os reis perpétuos, cargos que são de herança, atribuídos exclusivamente a negros, que são, como reis, obedecidos e tratados respeitosamente pelos seus súditos. Vão até à frente dos reis temporários, sob pálio e com uma guarda de honra de espadas alçadas.

A dança se compõe de dois “ternos” de personagens: os “congos” e os “moçambiques”.  “Terno” para eles tem a significação de grupo e não apenas de três pessoas.  Os “congos” parecem ter na festa uma situação de aristocrática ascendência, pois se compõem de pretos mais alinhados e até mesmo de mulatos e quase brancos.

Vestem-se de calções de cores fortes (vermelho vivo, verde, amarelo) enfeitados de galão de prata e ouro; saiotes também de cores berrantes e muito enfeitados; capacete ornado de papel de seda repicado e espelhinhos brilhantes ao sol; meias compridas, calçados de chinelos de tapete atados aos tornozelos.

Obedecem a uma organização meio militarizada, colocados em duas fileiras, um após outro, em cujo centro vai o capitão, tirando as cantigas, que são respondidas pelo resto da turma. Cantigas de ritmo meio tristonho e que traem já uma influência estranha ao seu conteúdo africano:

Em nome de Deus,
Pai Eterno
Com vosso nome
hei de me salvar.

Pai Eterno,
rei de todo o reinado,
com vossa coroa
nossos pecados serão perdoados.

A Senhora do Rosário
é feita de ouro em pó.
Abraçando a vossa cora agora,
filho da Virgem,
filho de Nossa Senhora.

Nesta fé eu venho vindo,
nesta fé hei de alcançar.
Perdoai os meus pecados
com ela hei de me salvar.

Na beira do mar cheguei,
grande perfume encontrei,
Senhora do Rosário
com ela eu estarei.

Lá envém o sol
envém  a lua.
Lá envém a nossa estrela,
nossa estrela matutina.

Glória a Deus no céu,
Jesus cá na terra
A virgem Maria
é quem nos governa.

Que casa é esta
que chegamos agora?
É de uma irmã
da Virgem Senhora.

É o vento que os atrai,
o mar que nos atrapalha
para no porto chegar (bis)

Kerié-leizon, kerié-leizon
lá no fundo do mar.

A casa de nossa Mãe
do céu é da cor de ouro.
Céu, céu, céu, céu,
tem para mim um tesouro.

Senhora do Rosário
traz uma estrela na testa.
Foi os anjos quem puseram
no dia da nossa festa

Virgem do Rosário
vossa casa cheira,
cheira a cravos e rosas
e flor de laranjeira.

Aquela estrela brilhante
que encontrei no mar,
é a Virgem do Rosário
que vamos levar.

Quem dera ser feito a aranha,
daquelas que tecem pano,
p’ra tecer os seus cabelos
que vivem me maltratando.

Eu sou aquele menino
que nasceu no mês de maio,
cumprindo sina de pobre,
passando muito trabaio ...

Ao que o coro responde, cantando invariavelmente os dois últimos versos:
Cunprindo sina de pobre,
passando muito trabaio ...

Quando a procissão se detém por qualquer motivo, executam bailados do curioso aspecto coreográfico, principalmente o “recortado”, que se assemelha, com mais movimentado e calor, ao “changez de places” (trocar de lugar) das quadrinhas francesas.



Os “moçambiques” são a plebe, a patuleia do cortejo real, e cuja organização não obedece às leis militares. Dançam embolados num só grupo e a sua dança é mais bárbara do que a dos “congos”. Pulam, agacham-se, rebolam, sacodem-se em trismos endemoniados e cantam quase sempre em dialeto.

Vai essa melodia dos “congos”, para dar uma ideia da sua música, onde ainda impera a profunda melancolia das senzalas:


Samambaia virou cacunda
meia noite quero saravá.

Ai orê, tetê,
minha banda
Salve povo do calunga,
salve os congos de Aruanda.

Pai Joaquim tetê,
pai Joaquim hé, há,
pai Joaquim veiu de Angola,
pai Joaquim veio de Angola
angorá.

Adeus, minha pemba,
adeus, minha guia,
minha terra é muito longe,
minha ganja é na Baia,
minha terra é muito longe,
minha ganja é na Baia.

Quem quer viver sobre o mundo
quem quer vier sobre o mar,
eu sou a cabocla Jandira,
vivo nas ondas do mar.

Tico-tico parou monjolo,
Sabiá cuou fubá,
crenda falta ingombe,
umbarata pucha orango é.

Uenda condembaconjó de oviti
ocema de unganga Uenda indira
movirini de otenhá sucumbô no calunga
conversa convirápoco no tendim, overim
otenha ó afa ongona de corittá catangunga
Oé.

Na Aruanda oué,
na Aruanda oûê.
Marimbá oié (bis).
Na Aruanda calunga,
toma conta de mim
na Aruanda.

A diamba pui já me ganda
chora meu peitori ajué.

Ubanda de lunga
pai Jacob de Umbanda
pá tacá patangoma
na calunga.

Quem foi que matou quindinmba
p’ra fazer timbiri?
se não fosse tatu-peba
quindimba não tava aqui.

Carneiro morreu
dentro da lagoa.
Bicho cambara
e morrendo atoa.


A música dos “moçambiques” é também de pronunciado sabor africano. Vestem-se com simplicidade. Um calção branco com galões, saiote branco enfeitado de fitinhas álacres e o capacete com espelhos (O espelho no capacete não tem apenas a função de adorno, como a princípio se supõe.

Tem um destino mais transcendente, de fundo fetichista, pois é colocado no capacete para afastar os ventos maus e os maus pensamentos. Ao ser comprado na loja, o espelho não pode ser mirado senão pela pessoa que o vai usar, sob pena de não cumprir o seu destino). Os pés descalços para desimpedir a coreografia que reclama sustância nas canelas.

Vingam-se dos “congos” com a candura de uma lenda que contam: Nossa Senhora do Rosário apareceu no mar Oceano e o povo se reuniu para levá-la à igreja. O padre convidou-a a sair e ela não atendeu. Vieram os” moçambiques”. Rufaram as caixas e cantaram. E foi, a Nossa Senhora do Rosário sorriu e acompanhou-os para a igreja, onde ainda está ...

Não só os “congos” como os “moçambiques” usam instrumentos de percussão como a caixa, o reco-reco, xique-xique, o caxambu e a cuica (eles falam puita). A viola e a sanfona também costumam aparecer, mas apenas com os “congos”.
A organização do cortejo é a seguinte: à frente, guiados por um estandarte da Senhora do Rosário que é ladeado por guardas de toalha de crivo ao pescoço, vão os “moçambiques”. Atrás vem os “congos”. 

Imediatamente vêm os reis perpétuos de coroa à cabeça e sob pálio ladeados por cortesões empunhando as varas (emblemas de autoridade). Seguem-se por fim os reis temporários, também sob pálio, com coroa e cetros de prata. Na cauda a multidão suarenta e devota, que acompanha o cortejo até o alto da capela, onde cumpre promessas e se embebeda nos botequins improvisados em torno do tempo.

Essas promessas são feitas durante o ano para serem cumpridas nos dias do “reinado”. Assim: no centro da capela estão assentados o vigário e os mesários em torno de uma mesa. Chega o penitente e se ajoelha ao pé do padre. Este toma uma coroa de lata entre as muitas que se acham sobre a mesa e coloca-a na cabeça do devoto, que se levanta e volta à porta principal, onde o aguardam parentes e amigos com guarda-sol aberto para acompanhá-lo em tantas voltas em torno da igreja quantas tenha sido as que prometera.

Os negros, pulando e cantando, seguem também os penitentes, que se revessam volteando a capela até que o sol se esconde de todo. Isso durante os três dias dos festejos que rendem contos de reis de esmolas todo ano.

O arcebispo de Belo Horizonte, tendo em vista que a festa não condiz, pelo seu sabor meio-pagão, com a dignidade da Igreja, proibiu, há poucos anos, intromissão do vigário, assim como interditou a capela para sua realização. Entretanto, os pretos construíram no mesmo logradouro um edifício, sem aparência externa de tempo católico e continuam a realizar anualmente as cerimônias do culto à Senhora do Rosário.

É tradição em Itaúna que a capela interditada pertence mesmo aos negros. 
É o caso que os pretos, no decênio de 1840, construíram pessoalmente, nas folgas que lhes dava o cativeiro, uma capela privativa no local em que se assenta hoje a igreja matriz. 

Estando naquele tempo a matriz instalada na capela do morro, e tendo o arraial se expandido para o lado em que estava a capela dos pretos, uns missionários capuchinhos que por lá estavam construindo o cemitério local, e por causa de um milagre que contarei mais adiante, sugeriram a permuta das capelas: ficaram os pretos com a do morro da Lage e cederiam para a matriz a que havia construído na praça João Pessoa, hoje praça da matriz. E assim se fez.
E a lenda que acima referi é a seguinte: quando se concluiu entre o vigário e os negros a permuta das capelas, tratou-se logo de fazer descer do alto da Lage os paramentos, as imagens e demais pertences da matriz, que lá se achavam.

Descidas as imagens para a nova matriz, verificou-se que a da Senhora do Rosário, durante a noite, desaparecera milagrosamente do novo templo e voltava para o seu antigo nicho no alto do morro.

Reuniram-se os negros e cantando e dançado as suas danças, repunham-na no altar da nova morada. Esse fato se repetiu três vezes, no fim das quais, frei Eugênio sugeriu que, sendo essa a vontade da Senhora do Rosário, lá a deixassem com os pretos e muitas festas se fizessem em regozijo de tão evidente milagre.




HISTÓRIA DO REINADO EM ITAÚNA
  
Textos: FILHO, João Dornas.  Livro Euclides, Rio de Janeiro 15 de junho de 1941, V.II Tomo II, nº 8, p. 113, 114, 115, 116;
FILHO, João Dornas. A influência Social do Negro Brasileiro. ed. Guaíra, SP-Rio: Coleção Caderno Azul, nº 13, 1943, p. 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26.
Acervo fotográfico 40/50: Prof. Marco Elísio Chaves Coutinho, Instituto Cultural Maria de Castro Nogueira, Museu Municipal de Itaúna
Pesquisa e Organização: Charles Aquino


domingo, 8 de abril de 2018

COPLAS AFRO

COPLAS AFRO-BRASILEIRAS

João Dornas Filho — 1935


Maria, marra os cabelos
boia goma no tundá
vamos pra beira do rio
ver os peixinhos nadar.


Quem foi que matou quindimba
pra fazer um timbiri?
Se não fosse tatú-peba,
quindinha não tava aqui.


Eu sou aquele menino
que nasceu  no mês de maio,
cumprindo sina de pobre,
passando muito trabaio.


Quem dera ser feito a aranha
daquelas que tecem pano,
pra tecer os seus cabelos
que vivem me maltratando





COPLA

Dicionário Michaelis.
— Poesia espanhola de cunho popular, com estrofes curtas, geralmente cantada com acompanhamento de música improvisada.
— Estrofe formada por quatro versos octossílabos, com rima obrigatória nos versos pares.

Dicionário Dicio
— Pequeno poema lírico de inspiração popular, constituído geralmente por uma estrofe rimada de quatro heptassílabos; quadra, trova.



Arte: Gabriel Aquino
Organização: Charles Aquino
Fonte: Jornal A Defesa, Oliveira 17 de fevereiro de 1935, nº 158, p.2.



sábado, 10 de fevereiro de 2018

ESCRAVIDÃO EM ITAÚNA PARTE I

Grande centro de agricultura e pecuária que abastecia as zonas de mineração no período do ouro, tornando-se depois uma espécie de entreposto da região circunvizinha - Sant'Ana de São João Acima possuía grandes fazendas de criação e agricultura o que explica o número considerável de escravos que habitavam o seu território.

Coevos da Abolição calculam razoavelmente em cerca de um milhar a população que a Lei Áurea libertou. Isso, para um pequeno distrito perdido no âmago do sertão mineiro, dá uma ideia da importância econômica de Itaúna naquela época. O comércio de escravos era feito com regularidade e em grandes proporções pela família de João Francisco, do Cortume, pela firma Moreira e Filhos e outros, sendo os maiores proprietários de escravaria o Cel. Manoel Gonçalves Cançado, da fazenda da Cachoeira, hoje Santanense; Cel. Quintiliano Lopes Cançado, da fazenda Antônio Jose de Siqueira e outros.

Gente de religião e dotada de bons sentimentos, os itaunenses sempre foram senhores compassivos para com os escravos. Havia pequenas exceções, cuja fama, é justo notar, já nos chega um pouco exagerada pela tradição. Assim é que contam horrores da fazenda da Bagagem, onde os escravos sofriam suplícios atrozes de uma senhora sem entranhas, que foi a esposa do fazendeiro Custódio Coelho Duarte. Até há pouco tempo existiam efetivamente, na Bagagem, os instrumentos de castigo para os negros que, não suportando mais os sofrimentos, dizem que se atiravam no açude da fazenda, suicidando-se. 



Imagem ilustrativa de fundo: Matt Botsford




TEXTO:
FILHO, João Dornas. Itaúna: Contribuição para a História do Município. Belo Horizonte. 1936, p.33.
Foto: Brasiliana Fotográfica
Pesquisa e organização: Charles Aquino


sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018

ITAÚNA: VOCABULÁRIO QUIMBUNDO PARTE I


O vocabulário quimbundo, é evidentemente lacunoso e como acredito que seja a primeira tentativa feita no Brasil com o fim de recolher esse importante material etnográfico, penso que prestará algum serviço aos estudiosos do assunto e concorra para trabalho mais amplo exigido pela afrologia brasileira.
Belo Horizonte, outubro de 1942
João Dornas Filho

VOCABULÁRIO QUIMBUNDO
Parte I
Os estudos sobre o negro brasileiro têm se ressentido da falta de um conhecimento mais exato da língua que falavam os pretos importados pelo tráfico, talvez porque hoje, quando o interesse por esses assuntos cresceu à altura da sua importância, já quase não existem mais africanos ou descendentes próximos de africanos que conheçam a língua dos seus maiores.

E o conhecimento desse ramo do assunto é fundamental a uma análise perfeita, porque a língua, nas suas características, no seu gênio, nas suas formas diversas, é a chave de muitos problemas de folclore, sociologia, etnografia e outros prismas da questão.

O vocabulário que apresento aos estudiosos brasileiros é evidentemente lacunoso, mas já constitui uma contribuição aqueles que melhor aparelhados quiserem completa-lo, ampliando-lhe o número de palavras e retificando-lhe a pronuncia e a significação.

Principalmente a pronúncia que varia de pessoa a pessoa e a gente não pode fixa-la porque não tem um ponto de referência na literatura escrita, que a língua não possui.

O quimbundo, ou “undaca de quimbundo”, que conhecemos, é um dialeto congoês que, em presença do novo meio onde se expandiu, há de ter se modificado bastante em relação à pureza original. 

Mas é justamente por esse motivo que ele mais nos interessa. Por essa transformação operada com o fim de servir de expressão num ambiente estranho aquele em que se gerou, adaptando-se e vincando a língua do Brasil.

E o vocabulário que organizei, com o auxílio do preto Manuel da Cruz, e dos srs. Serjobes Augusto de Faria, de Itaúna, oeste de Minas, e José Aristides de Sales e João Justino, de Belo Horizonte, fixa justamente esse momento de transformação que a “undaca” sofreu em presença do meio brasileiro.

O município de Itaúna, sob o ponto de vista dos estudos negros, é uma região, digna de apreço, antes que desapareçam os últimos vestígios quimbundos que ali tiveram marcada importância. São comuns na toponímia do município as palavras bántus como Catumba, Calambau, CaxambúMarimbondo, Cafuringa, etc.


Texto extraído do livro: FILHO, João Dornas. A Influência Social do Negro Brasileiro. Ed.Guaíra, São Paulo, 1942, p.71-72.

Pesquisa e organização: Charles Aquino